O que você vai ler abaixo não tem nada a ver com os textos anteriores.
Senti a necessidade de escrever uma crônica. Contar sobre o cotidiano de outras pessoas.
Esta é uma obra de ficção, uma história sobre o que verdadeiramente une almas: o amor. Aquele sentimento que muitas vezes não vemos pois o ligamos a grandes manifestações, mas acho que não poderíamos estar mais errados.
O amor verdadeiro está dentro de nós, e não pode ser medido por posts nas redes sociais. Mas ele pode ser visualizado todos os dias em pequenos gestos, e na vida simples de famílias simples.
E nada melhor do que falar do amor dos pais pelos filhos, dos filhos pelos pais e do amor entre irmãos.
Não se empolgue muito com o texto, é a minha primeira experiência nesse ramo, e sei que o caminho para um bom texto é muito longo.
Mas, na realidade, acho que é assim na vida real. Nem sempre as histórias são emocionantes, as pessoas não são perfeitas e nem sempre o final é feliz.
Episódio 1: Philipp e Meine
Lützelsee é uma aldeia pequena, fica no entorno do lago que tem o mesmo nome. Poucas famílias moram por aqui. É um lugar muito tranquilo, vivemos da nossa própria produção. A grande cidade mais perto, Zurich, fica a 25km de distância. São 5 horas de carroça, logo, viajar para obter suprimentos não faz parte da nossa rotina.
Minha mãe Olga passa o dia todo dentro de casa, cuidando dos afazeres domésticos. Ela prepara nossa refeição, tricota nossa vestimenta e mantém a casa limpa e organizada. E ainda nos ensina algumas coisas simples, já que não tem escola por aqui. É muito trabalho para ela, mas sem uma filha mulher para ajudar, ela precisa dar conta de tudo.
Meu pai, o Sr. Walder, passa muito tempo no celeiro, cuidando da colheita e dos animais. Durante o inverno todo cuidado é pouco para que eles não morram de fome ou de frio. A gente tem um cavalo, uma vaca, algumas poucas ovelhas, um casal de porcos e galinhas. São poucas posses para uma família pequena. Só meus pais, eu e meu irmão gêmeo Meine.
Papai é diferente dos pais dos meus amigos. Ele não nos deixa ajudar nas tarefas, mesmo agora que eu e o Meine já estamos com 8 anos. Ele diz que trabalhar é só para as crianças mais velhas, que o serviço é muito pesado para nós. Ele prefere que a gente aprenda a ler e a escrever.
Meine e eu somos muito unidos. Não temos brinquedos, então passamos o dia brincando com o que encontramos ou caçamos na natureza. Adoramos explorar o bosque que fica ao lado de casa! Criamos fortes, caçamos coelhos e montamos pequenas armadilhas para os desavisados.
Sempre vamos para o lago. Apostamos corrida ao redor dele, são 2,5 km de orla. Maine ganha na maioria das vezes, eu sempre fui mais forte, mas ele é mais ágil. Nós não somos gêmeos idênticos, mas poucas pessoas sabem ver as diferenças.
Só que agora, no inverno de 1733, com tanta neve no chão, temos pouca diversão. O bosque está coberto, os pássaros e pequenos animais foram embora. Não temos onde correr.
Decidimos brincar de escorregar no lago congelado. É tão divertido correr e derrapar!
– Philipp!! Philipp, socorro!
– Meine! Meine, cadê você?
– Phil!
O gelo sobre o lago rachou, e Meine caiu na água congelante.
Corri até ele, deitei-me sobre a borda do buraco. Senti o frio na minha barriga e meu peito. Retirei as luvas e coloquei as mãos dentro d’água para puxar Meine para fora do buraco. Ele estava mais pesado do que de costume. O frio percorreu os meus ossos. Tentei imaginar como meu irmão estava se sentindo, e o medo de perdê-lo tomou conta de mim.
Tomado pela adrenalina, retirei as roupas molhadas dele, e o vesti com as minhas roupas. Eu já não sentia mais o frio, mesmo estando agora só com o camisão de baixo. Levei-o de volta para casa e coloquei-o de frente para a lareira. Mamãe ficou muito assustada, nos acudiu com panos secos e roupas limpas. Ela gritou chamando o papai, que chegou logo em seguida.
Meine se recuperou rápido e logo nossa vida voltou ao normal. Ou quase. Quando o inverno chegava a gente não saía mais para brincar. Ele começou a se interessar por mecanismos pequenos e ferramentas delicadas, e passava o tempo tentando consertar objetos que os vizinhos davam pra ele quando quebravam. Seu maior interesse era por caixinhas de música, trincos, relógios ou qualquer coisa que tivesse rodas ou catracas.
Enquanto isso eu comecei a ajudar o papai nas tarefas do campo. Acho que o acidente do meu irmão fez o papai querer a gente mais perto dele.
O tempo foi passando e as nossas tarefas no campo foram aumentando. Eu não me importava, mas Meine não queria aquela vida para ele. Seus sonhos eram outros, então se mudou para Zurich e começou a trabalhar como relojoeiro. Logo em seguida se casou com Amelie.
Eu nunca me apaixonei, nunca me interessei por nenhuma moça da aldeia nem da cidade grande. Quando papai faleceu, eu me tornei o dono da casa aos 23 anos de idade. Cuidava dos meus afazeres e da mamãe, o que, no fundo, foi uma ótima desculpa para não me casar.
Meine sempre vinha nos visitar, mas nunca trouxe Amelie junto. Nossa casa em Lützelsee era muito quieta, não havia crianças lá. Isso, de certo modo, me entristecia, pois a minha infância naquele bosque e lago, ao lado de Meine, foi a época mais feliz da minha vida, mesmo com o acidente.
Quando mamãe faleceu, eu vendi nossa terra e fui para Zurich. Não havia mais nada para mim, além de lembranças, em Lützelsee. Meine era a minha única família, a única pessoa viva que eu amava.
Meine e Amelie me acolheram na casa deles. Antes da minha chegada viviam sozinhos, pois não tiveram filhos. Fui muito bem recebido e comecei a trabalhar na oficina do meu irmão, que ficava em um aposento da casa dele, com uma porta virada para a rua. Eu atendia os clientes e limpava o local, enquanto Meine se concentrava nos consertos.
Eu nunca entendi o casamento de Meine e Amelie. Para mim era muito claro que eles não se amavam, não como um casal deveria se amar. Eles cuidavam um do outro, é verdade. Ele dava abrigo e segurança a ela, que retribuía cuidando da casa, da comida e das roupas. Ela não tinha ciúmes da nossa proximidade, nunca visitou nossa família em Lützelsee, nem fazia questão de estar presente em nossas conversas, mas sempre nos supria de alimentos e roupas limpas com um rosto sorridente. Às vezes mais parecia que ela era uma criada, e não a esposa dele. Acho que por isso eles nunca tiveram filhos…
Mas o casamento deles, e o meu não casamento, não eram assuntos que deveriam ser comentados, nem mesmo entre nós dois. A gente sempre soube o que o outro sentia, mas não ousava falar sobre isso.
Depois de alguns anos comecei a tossir muito. E durante muito tempo. Meu pulmão foi enfraquecendo e o cansaço dificultava o meu trabalho, mas eu me esforçava para estar na oficina, pois essa era melhor parte do meu dia, quando eu podia estar perto do Meine para conversar e ver o movimento da rua.
Piorei muito no inverno, e já não conseguia mais me levantar da cama.
Quando éramos crianças eu salvei a vida do Meine. E agora pude vê-lo tentando salvar a minha. Mas não havia mais nada a ser feito, os médicos já não podiam me ajudar. A pneumonia se espalhou, era só questão de tempo até eu partir…
Meine ficou ao meu lado, cuidou de mim o tempo todo. Me fez companhia, trazia comida, chá, sempre vinha conversar comigo. Me ajudava com o banho e a barba. Nunca me negligenciou. Eu via que ele estava muito triste, mas ele fez tudo o que pode para que a minha partida não fosse sofrida.
Quando crianças eu consegui salvá-lo, e agora ele não consegue retribuir. Mas eu sei que não é culpa dele. Sou muito agradecido pelo modo com que ele me tratou durante toda a minha vida.
Philipp e Meine. Irmãos. Gêmeos. Unidos desde o ventre até que a morte os separe.
Mas, será que a morte realmente separa as almas gêmeas?